Relendo a história javista da criação


No livro do Génesis encontramos duas histórias diferentes que explicam a criação do ser humano. A primeira encontramo-la no capítulo um[1], e faz parte do que se denomina tradição sacerdotal[2] (fonte P); enquanto que a segunda aparece nos capítulos dois e três, e provem da tradição javista[3] (fonte J). Muitas pessoas fazem uma leitura literal destas histórias, ou pelo menos isso é o que dizem, porque relendo esta tarde a segunda, que relata o ocorrido no jardim do Éden, assaltava-me um mar de dúvidas e perguntas. 

Para começar, pareceu-me irónico que, se para muitas pessoas o Éden é um lugar paradisíaco onde o ser humano vivia sem responsabilidade alguma, o texto o que diz é que o homem foi criado com a intenção de o trabalhar e dele cuidar. Depois senti-me um pouco incomodado ao ler que a mulher foi criada por Deus com a única intenção de que a sua primeira criação, o homem, não estivesse só. Mas em seguida disse a mim próprio… Vejamos, vejamos… É evidente que os autores desta história têm uma ideia clara do que e quem eram Adão e Eva… Mas: Como se compreendiam a si próprios Eva e Adão segundo o texto javista?



“Então Deus formou o homem do pó da terra[4]”… Que significava para Adão ser um homem se era o primeiro e nunca tinha visto um? Ser ligeiramente diferente da terra? Não ser Deus? Ser o jardineiro do Éden? Estar aborrecido? Como se deve comportar um ser humano para ser um homem se ninguém o ensinou a sê-lo? Adão imitava Deus? É Deus um homem? E se o que tornava um homem a Adão era algo físico… Como sabia que o pedaço de carne que tinha entre as pernas era mais determinante do que a sua orelha para o classificar dentro da categoria humana como um homem? E se fosse a sua orientação sexual… Se não tinha mais seres humanos, quando foi criado: Adão via-se como heterossexual? … Porquê? Talvez porque não tinha nenhum tipo de atração pelos animais aos quais depois deu nome? Tinha algum tipo de atração sexual?  

“Da costela que Deus tinha tirado do homem formou uma mulher…[5]”. Ser criada a partir de um osso e não do barro, converteu-a em mulher? Ou foi o não saber-se única no mundo? Ser mulher para Eva era não receber o nome diretamente de Deus mas de outro ser humano? Somos portanto todos mulheres depois de Adão? E se a categoria mulher tinha que ver com o seu corpo… Ser mulher significava não ser homem? Poder-se-ia ser as duas coisas ao mesmo tempo? A única diferença entre o seu corpo e o de Adão eram os genitais? Porque ser mais alta ou mais baixa, mais gorda ou mais magra, importava menos que ter mais peitos que Adão para ser nomeada “mulher”? E sim, ser mulher é sentir-se exclusivamente atraída sexualmente por um homem… Eva estava atraída por Adão? Como podia saber que não lhe atraíam também (ou exclusivamente) outras mulheres se não tinha visto nenhuma? Ou é que ser heterossexual é o que ocorre a milhões de mulheres no mundo que não podem escolher elas próprias quem as atrai? Pensando um pouco, se eu tivesse sido o segundo ser humano e me tivessem chamado “mulher”, creio que pensaria que ser mulher significava ser companheira de outro ser humano, formar comunidade (unicamente a partir de Eva existe a comunidade humana), ser capaz de ver, conviver, ajudar e ser ajudada por outro ser humano… 

Depois de nos detalhar a criação do homem e da mulher, o javista diz-nos aquelas palavras tão conhecidas: “Por esse motivo o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne[6]”. Surpreende, lido milhares de anos depois, que a história contada anteriormente se utilize como a justificação do matrimónio heteronormativo. De facto, nem Adão nem Eva abandonaram pais ou mães, mais ainda, no povo Israelita os homens não abandonavam a casa familiar para se casar (não seriam homens?), mas as mulheres. Mas a história não acaba aqui… se não que continua a explicar-nos como Adão e Eva desobedeceram a Deus e comeram do fruto proibido. E de repente, após este facto: “abriram-se os olhos a ambos e aperceberam-se que estavam nus[7]”. E eu interrogo-me, se Adão e Eva não se tinham apercebido de como era o seu corpo ou o do seu par: Como podem ser a justificação do matrimónio heteronormativo? Segundo o libro dos Génesis, a Adão não lhe interessavam os genitais de Eva para se unir em “uma só carne” e nem a esta os de Adão. É evidente que a quem interessa os seus genitais são aos leitores homófobos de esta lenda, mas a Adão e Eva, não. 

Se lemos literalmente a história javista da criação, é difícil ver nela homens e mulheres, ou machos e fêmeas. Pelo menos se estes conceitos são os que utilizamos atualmente. Por outra parte, muito debateram, os literalistas, sobre se houve ou não houve sexo no paraíso, mas o que é claro é que sexo heterossexual só houve nas suas mentes, porque seria difícil catalogar dessa maneira uma relação sexual entre dois seres humanos que são incapazes de se verem como homens ou mulheres e que não podem ver o corpo nu do outro. Se Adão e Eva fossem uma só carne no Éden do literalismo, tê-lo-iam feito sem que essa carne tivesse necessariamente uma forma determinada. De facto, a primeira confirmação clara de sexo na Bíblia, encontramo-la fora do Éden: “Adão conheceu Eva, sua mulher, Ela concebeu e deu à luz Caim[8]… Forçando um pouco alguns conceitos poderíamos catalogar esta prática sexual como heterossexual… Mas é impossível fazê-lo dentro do Éden. Só depois do pecado, da caída, há heterossexualidade.  Antes, em todo o caso, houve dois seres humanos que se relacionavam livremente sem nenhum tipo de tabu nem condicionante. Não havia categorias, nem identidades. Só dois seres humanos que se encontravam e se complementavam mutuamente. Todo o mais virá depois, depois da queda, depois do pecado, depois da expulsão do Éden. 

A heteronormatividade e o binarismo de género, tentam voltar a entrar todos os dias naquele paraíso longínquo para se apoderar do conhecimento do bem e do mal… Eles dizem que aquele lugar lhes pertence. Que aquele é o seu lugar e de ninguém mais. Mas não há que dar-lhes demasiada importância, aquele jardim não é de ninguém, e aqueles que tentem apropriar-se dele encontrarão à entrada querubins e a chama de uma espada zigzagueante que os impedirão de entrar. Melhor seria para eles e elas, mas também para nós, dirigirmo-nos para a cruz em vez de para o Éden. Ali está realmente a medida de qualquer identidade que pretenda ser verdadeiramente humana e essencialmente cristã.



Carlos Osma

Tradução de Aníbal Liberal Neves

NOTAS:
[1] Concretamente até ao capítulo 2 e versículo 3. 
[2] Os autores seriam os sacerdotes. Composta no exílio da Babilónia por volta de 450 a.C.
[3] Provem do Reino de Judá. É a mais antiga e foi composta cerca de 950 a.C.
[4] Gn 2,7
[5] 2,22
[6] 2,24
[7] 3,7
[8] 4,1





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