"Não podes entender a Bíblia se não aceitas a diversidade". Entrevista a Thomas Römer


Thomas Römer É professor de Bíblia hebraica na Universidade de Lausana e desde o ano de 2007 ocupa a cátedra "A Bíblia nos seus contextos" no “Collège de France”. É membro da « “Académie des inscriptions et belles-lettres” desde 2016.

Consideram-no um dos principais especialistas do mundo em Bíblia hebraica, o que tem a dizer aos que afirmam que os grandes especialistas cristãos na Bíblia situam o cristianismo no cérebro em vez de no coração?

Não deveria haver antagonismo entre "cérebro" e "coração". É importante entender historicamente a formação dos textos que se converterão, então, na Bíblia, para perceber que esses textos provêm de contextos históricos concretos e que é impossível reivindicar esses textos como verdades atemporais. Mas isto não excluiu em absoluto a sua leitura de una maneira espiritual ou religiosa.

O Primeiro Testamento é um livro que muitos cristãos lêem como uma lei, outros como uma novela, mas pelo qual a maioria da população já não tem demasiado interesse. O que é que não deveríamos perder de vista ao lê-lo se queremos saber o que é pretende (ou pretendia) dizer?

Não há um "Novo Testamento" sem um "Antigo Testamento". Não devemos esquecer que os compiladores do Novo Testamento não quiseram abolir a Bíblia hebraica. O Novo Testamento estabeleceu-se definitivamente no século IV, antes os cristãos tinham o "Antigo testamento" como a sua única Bíblia. Em qualquer caso, nunca se considerou que os escritos do Novo Testamento substituíssem a Bíblia judaica.

Como interpreta o princípio da Reforma que afirma a “Sola Scriptura”?

Este princípio foi uma crítica ao dogma e magistério católico do Papa. É uma ideia importante porque insiste em que a Bíblia é a base do cristianismo e não as doutrinas da Igreja. O perigo deste princípio é entendê-lo como desconetado do contexto histórico dos textos, de modo que possa conduzir, especialmente nas Igrejas protestantes, a uma compreensão fundamentalista da Bíblia.

Há umas semanas Donald Trump reconhecia Jerusalém como capital de Israel, para regozijo de muitos cristãos fundamentalistas que vêm nesta ação o cumprimento de profecias sobre o final dos tempos que dizem relata a Bíblia. Qual a sua opinião sobre isto?

Isto mostra o quão perigoso que é a abordagem desinformada e fundamentalista da Bíblia. Trump quer agradar aos evangélicos conservadores que nele votaram. Segundo a visão apocalítica desses evangélicos, Jerusalém necessita ser a capital de um grande Israel e o Templo necessita ser reconstruído (temo que isto virá depois). Então Jesus regressará e todos os judeus terão que se converter; caso contrário, serão assassinados. Estes evangélicos são, de facto, aliados muito estranhos da ala direita da política israelita atual.

O texto de Sodoma e Gomorra que aparece no livro do Génesis serviu e serve ainda para justificar a discriminação, e mesmo o assassinato, das pessoas LGTBI. Contudo, alguns especialistas crêem que não se interpretou corretamente. Qual era a finalidade desta lenda?

A história de Sodoma e Gomorra trata da falta de respeito pela hospitalidade, que era um pilar importante das antigas sociedades do Oriente Próximo. O que os habitantes das cidades querem fazer com os estrangeiros protegidos por Lot é violá-los. Isto não tem nada que ver com a homossexualidade, mas com a violência e a falta de respeito pela dignidade humana. Ainda no Novo Testamento, Jesus refere-se a Sodoma e Gomorra como exemplo da falta de respeito pela hospitalidade.

Quando lemos no Levítico 20:13 “Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um ato abominável; serão os dois punidos com a morte; o seu sangue cairá sobre eles”, não reconhecemos o Deus de Jesus. E o senhor?

O texto trata sobre os papéis e o género no Antigo Oriente Próximo. Segundo esta civilização, um homem é sempre ativo e uma mulher passiva. É inconcebível para os autores de Levítico 18 e 20 que um homem possa ter uma parte passiva numa relação sexual. Estes textos também mostram uma visão restritiva da sexualidade, segundo a qual o único objetivo da sexualidade é a procriação. Tal texto situa-se num contexto em que se aceita a poligamia, assim como a escravidão e onde não há igualdade entre homens e mulheres. Ditos textos não podem ser transferidos para a nossa sociedade do século XXI.

Face ao ataque do literalismo bíblico, muitas pessoas LGTBI cristãs encontram respostas em teologias como a da libertação, a teologia gay e lésbica, ou a teologia queer; que a miúdo são criticadas pela excessiva liberdade com que reinterpretam os textos bíblicos. Quais são, se os há, os limites que na sua opinião não deveriam ultrapassar qualquer teologia se quer estar fundamentada biblicamente?

É legítimo que as pessoas LGBTI cristãs ou judias procurem outros textos na Bíblia, além dos Génesis 19 e Levítico 18 e 20. De facto, há alguns que mostram outra visão da sexualidade como o Cântico dos Cânticos; a história de David e Jónatas contem passagens homoeróticas. Estas referências à Bíblia são certamente válidas; mas nunca se deve esquecer que cada abordagem teológica baseada na Bíblia necessita um esforço hermenêutico. Numa leitura LGTBI da Bíblia, não se deveria esquecer que os autores desses textos se encontravam numa sociedade totalmente diferente à nossa.

Na sua tese de doutoramento “Israels Väter” defende que o Pentateuco é uma tentativa de unificação entre duas fações internas do judaísmo depois do exílio: os exiliados na Babilónia e os que permaneceram no país. Atualmente parece que há profundas diferenças de opinião entre os cristãos liberais e os fundamentalistas ao interpretarem a Bíblia. Que propõe para chegar a um acordo mínimo entre estas duas posições?

Não tenho uma resposta simples para esta pergunta. Às vezes sinto-me desesperado com este problema. E realmente não entendo a obsessão de algumas pessoas pela orientação sexual. A sexualidade é uma parte importante da pessoa, mas a pessoa não pode reduzir-se à sua sexualidade. Poderíamos estar de acordo com a importância da abertura ao próximo? Poderíamos estar de acordo em nos abstermos de condenar o outro? Isso é o que espero, mas estou cada vez menos seguro.

A nível pessoal, ser um homem gay: Ajudou-o, foi uma limitação, ou não o influenciou no momento de estudar e interpretar a Bíblia?

Ser gay não me ajudou na minha carreira, mas também nunca pensei que fosse uma desvantagem. Quando comecei a minha carreira académica em 1980, não era tão fácil ser abertamente gay, mesmo na Europa. Contudo, sempre achei que a honestidade ajuda a ser aceite pela maioria das pessoas.

Para terminar: Poderia destacar pelo menos um ensinamento, mensagem ou ideia da Bíblia hebraica que na sua opinião possa ser relevante, atualmente, para as pessoas LGTBI?

A Bíblia é sobretudo uma compilação de textos muito diversos; e não podes entender a Bíblia se não aceitas a diversidade. Cada ser humano pode encontrar o seu lugar na Bíblia.

Muito obrigado pela sua amabilidade em responder a estas perguntas.



Entrevista realizada a Thomas Römer por Carlos Osma

Fotografía de @Kfir Ziv

Tradução de Aníbal Liberal Neves








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