Se tivéssemos que escolher o personagem mais queer do Evangelho de João muitos optariam por Lázaro, um jovem inseparável das suas irmãs Maria e Marta que saiu do sepulcro em grande depois de o seu íntimo amigo Jesus chorar perante o seu túmulo. Outros o fariam pelo idoso Nicodemos, que se aproximou de Jesus pela noite por medo de que alguém o pudesse descobrir e foi incapaz de compreender que era o que o atraía em Jesus, nem o convite que este lhe fez para que nascesse de novo e se livrasse do legalismo e da religiosidade que o paralisavam e impediam de ver o reino de deus.
Mas para mim hoje, e isto reconheço que vai para dias, ao ler a última conversa entre Jesus e Simão Pedro que encontramos no capítulo 21, creio que este discípulo merece ser reconhecido como o mais queer de todos. E o motivo não tem nada que ver com a sua expressão de género, nem com a sua identidade sexual, mas sim com a sua convicção de que não encaixa no estereótipo, no modelo do é um verdadeiro discípulo. E percebo que essa identidade queer a vivia com culpa, como muitas cristãs e cristãos LGTBIQ, impedindo-o de se sentir amado por Jesus.
Depois de comer na Praia com o resto dos discípulos, Jesus e Simão Pedro ficam sós, o mestre pergunta-lhe: «Amas-me mais que estes?». A resposta do discípulo tem uma nuance que o denuncia: «tu sabes que te amo». Jesus volta a perguntar-lhe pela segunda vez: «Amas-me?», e Simão Pedro repete-lhe: «tu sabes que te amo». A diferença entre amar, que é o que Jesus lhe pergunta, e querer, que é o que Simão Pedro responde, pode parecer trivial, mas considero que não o é tanto, e nessa pequena nuance, é onde creio que o discípulo explicita que depois de ter negado Jesus três vezes antes que o crucificassem, ele não sente que encaixe na imagem do discípulo que responde tranquilamente, que ama Jesus sem se sentir um pouco hipócrita. É verdade que poderia ter mentido, mas desta vez o sentimento de culpa que arrastou obrigou-o a reconhecer que a palavra amor era grande demais, que no era digno de a utilizar e por isso (talvez) preferiu responder com outra mais pequena.
Na praia, perto de onde Jesus e Simão Pedro dialogavam sobre os seus amores e os seus quereres, encontrava-se um discípulo que teria confessado a Jesus firmemente: «claro que te amo». Era o discípulo amado, o perfeito, o discípulo por excelência, o corajoso que não fugiu e acompanhou até à cruz o seu mestre, o discípulo a quem Jesus encomendou a sua própria mãe, o primeiro que acreditou na ressurreição, o que não duvidou em nenhum, o que não falhou, o que sempre esteve no lugar adequado no momento exato, o discípulo com uma fé inquebrável, o único que descansou a sua cabeça sobre o peito de Jesus. Frente ao discípulo amado, Simão Pedro deve ter-se sentido constrangido, desconfortável, porque qualquer comparação com ele o deixava em mau lugar. Ele era muito mais humano e contraditório, mais cobarde e mentiroso. Suponho que, por isso, não se atreveu a responder a Jesus: «tu sabes que te amo».
Por muito que se diga que todos somos pecadores, que não há ninguém perfeito, a realidade é que existe uma imagem idealizada, como a do discípulo amado no evangelho de João, sobre como é o discípulo que pode responder tranquilamente que ama Jesus mais que o resto dos mortais. Evidentemente nós não estamos incluídos nesse imaginário, claro, a nossa identidade é terrena, humana, contraditória e efémera, como a de Simão Pedro, somos demasiado queer para poder sermos integrados em idealizações sem nome, em projeções como a dos discípulos perfeitos. E por isso, nos sentimos tolerados, aceites, respeitados, queridos, mas não amados. Para poder sê-lo, deveríamos ser distintos, muito mais heterossexuais, jovens, fundamentalistas, cisgénero, louros, fiéis, masculinos, espirituais, delgados, musculosos, ricos, perfeitos, submissos… deveríamos ser algo totalmente inalcançável para nós, deveríamos ser falsos, puro fumo, um holograma em 3D como os discípulos amados que nos rodeiam.
A verdade é que sempre que mentir, afirmar que o amamos como se supõe que o deveríamos fazer, parecermos humildes e respeitáveis, ter cara de não ter partido um prato, metermo-nos à força dentro do seu holograma em 3D e deixar que essa imagem nos destroce a vida. Podemos nos converter em pessoas reconhecidas como pedras sobre as quais a sua comunidade se sustem, enquanto a nossa vida cambaleia. Ou podemos, como Simão Pedro, baixar a cabeça e responder unicamente que lhe queremos, que somos queer, que não somos como os seus discípulos amados, aqueles a quem o mundo inteiro louva e não necessitam justificar que são cristãos. E estou convencido, pela minha experiência, que se o fizermos, encontraremos com um Jesus mais humano e mais próximo que se põe ao nosso nível e se dirige às nossas contradições e incongruências, porque assim somos todos, para nos perguntar pela terceira e última vez: «amas-me?». E ao escutar que, apesar de tudo, está ao nosso lado, que sabe que temos muito que avançar, mas que não vai abandonar-nos, talvez nos atrevamos a levantar a cabeça e olhar-te nos olhos para te dizer como Simão Pedro: «Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que te amo». Se isso acontecer, se tivermos coragem para o fazer, descobriremos que o discípulo amado não é a nossa meta, que a nossa meta é Jesus. E então entenderemos realmente o que é sermos cristãos que em vez imitar uma imagem idealizada, o que se nos pede é responder à chamada de quem nos diz: «Segue-me».
Carlos Osma
Tradução de Aníbal Liberal Neves
Artigo Original: "Señor, tú sabes que te quiero"
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