A “Sola Fide” e a salvação gay


O heterocentrismo cristão, e mais concretamente o evangélico, tenta apoderar-se das “Cinco Solas” erguendo-se como seu único destinatário e administrador. Para isso criou uma ideologia que converte a “Sola Escritura” (Somente a Escritura) numa lei que persegue e condena as identidades ou afetividades não normativas. A “Sola Gracia” (Somente a Graça) reserva-a para aqueles que anteriormente “circuncidaram” os seus desejos e sentem ou atuam como heterossexuais. Quando diz “Solo Cristo”, (Somente Cristo) adora um ídolo construído à sua imagem e semelhança, esquecendo a mensagem e a vida de Jesus de Nazaré que se situou sempre ao lado dos “outros”, dos deserdados e daqueles que sofriam marginalização. A afirmação “Somente Glória a Deus” complementa-a com o esclarecimento de que os nossos corpos e desejos dissidentes jamais poderão glorificar o Criador. Contudo, é o princípio da “Sola Fe” o que com mais clareza resiste à sua apropriação e à sua tentativa de manipulação.

A ideologia heteropatriarcal pode ter-nos feito crer em algum momento que a Bíblia nos condena, que a Graça divina não nos pode salvar, que Cristo não morreu por nós, ou que não estamos a trabalhar pela Glória de Deus mas pela nossa. Mas jamais conseguiu destruir a fé que Deus, não sabemos bem porquê, quis dar-nos. Não vou aqui fazer um elogio da fé dos cristãos LGTBI porque qualquer fé que é fiel à realidade passa por uma infinidade de estados, inclusivamente da ausência em certos momentos da vida. Não é fácil crer sempre em Deus, nem ser coerente em todo momento com a fé que dizemos ter, os seres humanos somos contraditórios e vulneráveis. Contudo penso que a fé da maioria das pessoas LGTBI é um milagre divino que teve que suportar uma infinidade de provas que poderiam tê-la feito desaparecer. Só a misericórdia de Deus permitiu que a tenhamos conservado apesar de que aqueles que dizem construir o seu Reino se tenham comportado como Caim connosco.

Quando digo ter fé não me refiro a crer em certas normas, os ensinamentos eclesiais mais ou menos aceites pela maioria, ou as leituras e interpretações bíblicas mais influentes. O princípio da “Sola fide” refere-se a que só é através da fé que Deus nos salva. E podemos ratificar que este princípio da Reforma se tornou real na nossa experiencia, já que foi a fé que nos permitiu superar muitas das limitações com as que se supunha tínhamos que viver, a que nos empurrou a desfazer-nos e denunciar as imposições e injustiças que pretendiam fazer-nos viver de joelhos. Ela foi o motor que mudou o nosso mundo e quem nos empurrou a tentar transformá-lo com os valores do evangelho, da vida. E para tudo isto fez falta fé, não sei se muita ou se pouca, mas evidentemente uma fé que procede de Deus, porque a realidade heteronormativa que tão ferozmente luta contra a nossa é inimiga do amor e do evangelho. Só a fé tem a capacidade de nos salvar, de nos permitir crer que a ressurreição dos que temos sido invisíveis, apagados e lançados ao inferno, é possível. E são agora os nossos corpos ressuscitados os que anunciam que há muita vida pela frente para compartir com os seres que amamos. Esse é o princípio da “Sola fide”, o que nos transforma e nos faz crer, criar e vislumbrar à nossa volta, que o amor e a justiça divina finalmente se estão a tornar presentes.

Dizia Lutero que “esta é a liberdade cristã: a única fé”, talvez por isso as cristãs e os cristãos LGTBI mostramos às vezes uma liberdade que desestabiliza os que estão agarrados à lei. Provavelmente alguns de nós não podemos formar parte de uma comunidade cristã, é possível que nem saibamos justificar certos versículos bíblicos, pode ser que duvidemos da Graça divina para connosco, ou sintamos mesmo às vezes que não estamos à altura para dar glória a Deus; Contudo recebemos gratuitamente uma fé que nos converteu em seres humanos livres e, muitas vezes só a temos, para nos dizer que vale a pena continuar, que Deus está connosco, que a Palavra de Deus é Jesus de Nazaré e que graças a ele a Graça divina foi derramada sobre todo o ser humano criado desde o princípio à sua imagem e para a sua Glória. Não é quem nós somos, ou o que fazemos, ou o que sentimos... mas Deus e o seu amor para connosco. Ninguém é digno, ninguém o merece, não importa a orientação sexual da pessoa ou a sua identidade de género. Só Deus é digno e é esse Deus o que colocou em nós uma fé que às vezes parece estar tão só no meio de uma realidade eclesial e social que nos estigmatiza. Só a fé, isso é o que temos, mas é pouco.

Na sua Carta aos Gálatas, Paulo exorta os cristãos a manterem-se firmes na liberdade com que Deus os fez livres e a não voltarem a estar sujeitos ao jugo da escravidão (1). As cristãs e cristãos LGTBI sabemos muito bem o que significa o jugo heteropatriarcal que pretende escravizar-nos e o sofrimento que é capaz de nos infringir. Por isso estas palavras paulinas tornam-se Palavra de Deus no meio da nossa realidade para nos instar a mantermo-nos livres, longe de qualquer legalismo ainda que este se justifique em nome de Deus. Os que se entregam às exigências heteronormativas a fim de serem fiéis ao cristianismo, afastam-se na realidade do mestre e da Graça. Porque no seguimento de Jesus a heterossexualidade não tem nenhum valor, somente a fé trabalha pelo amor. E é que só o amor é a manifestação real e tangível da fé que recebemos imerecidamente, o amor que partilhamos com os/as nossos/as companheiros/as, com as nossas filhas, com quem temos à nossa volta. Renunciar ao amor, deixar de viver pela fé, pode nos trazer o visto dos que se arvoraram em defensores da lei divina, mas isso afasta-nos de Deus.

Só a fé salva, nada nem mais ninguém, não há intermediários nem leis que possam substituir a ação amorosa de Deus por nós. É melhor não cair na servidão de “os bons cristãos” que colocam correntes à fé de Cristo, mas deixar-se levar pelo evangelho que nos diz: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, não escutam as vozes dos extranhos(2)”. Desta forma viveremos livres na fé que Deus, pelo seu infinito amor, infundiu em nós sem o merecermos.



Carlos Osma

Tradução de Aníbal Liberal Neves


Notas:

1Gal 5
2Jn 10, 27



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