Como um cristão insensato


A carta aos Gálatas é conhecida como “a carta da liberdade cristã”, talvez porque isso é o que está em jogo nas comunidades a que vai dirigida. Carta completamente atual num contexto como o nosso, onde às vezes se afirma a liberdade cristã para depois a afogar com inumeráveis condições. Os judaico-cristãos das comunidades gálatas, muito mais próximos da teologia tradicional do seu tempo que Paulo, defendiam como ele a liberdade; contudo a sua liberdade só podia ser vivida corretamente submetendo-se à Lei.

Toda agente sabia que segundo o acordado pelos dirigentes da Igreja em Jerusalém, não se podia exigir aos novos cristãos que se circuncidassem, por isso os judaico-cristãos tentavam revalorizar a Lei para afirmar posteriormente que a circuncisão era a consumação da fé cristã. Revalorizar a lei é o primeiro passo para tentar defender uma tradição, um ponto de vista, ou a cosmovisão que se supõe inquestionável. Posteriormente ter-se-á que criar tradições teológicas para explicar que a obrigação de cumprir a lei não põe em causa a liberdade cristã, mas antes a afirma. Todas estas dissertações fazem-se sempre num plano teórico, mas inevitavelmente, tem as suas consequências negativas na vida real de muitas pessoas.

A oração matutina do judaísmo dizia: “Bendito Sejas Tu, Ó D nosso Senhor, Rei do Universo, que não me fizeste pagão…que não me fizeste escravo…que não me fizeste mulher… Seja a Tua vontade, Senhor, nosso D e D dos nossos pais, que nos habituaste à Tua Torá y nos uniste aos Teus mandamentos (1)”. Oração que reflete a divisão que dava lugar à formulação que os judaico-cristãos estavam a introduzir nas comunidades gálatas. Distinção que não pretendia potenciar a diversidade que se dá no mundo, mas desprezando-a, colocando umas pessoas em cima de outras dependendo de algumas caraterísticas pessoais, ou mesmo circunstanciais. Oração judaica, mas oração que com umas pequenas alterações pode ser muito nossa: “Bendito Sejas Tu, Ó Deus nosso Senhor, Rei do Universo, que não me fizeste muçulmano ou ateu, escravo ou imigrante, mulher, heterossexual, pobre, inculto, enfermo…Seja a tua vontade a que possa justificar com a tua palavra os meus interesses, e condenar o resto”.

Paulo contra-ataca  duramente ao afirmar: “Já não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus (2)”. Perante Cristo todos somos iguais, as diferenças diluem-se, as nossas caraterísticas pessoais são irrelevantes e encontramo-nos uns aos outros como somos. Quando isto não é assim, é porque nos afastámos de Cristo. Não se trata de anular o que somos, de dissolver a nossa personalidade em nada, mas de subordinar a Cristo tudo o que somos. Unidade em Cristo face à divisão da Lei. Encontro do irmão e irmã em Cristo, frente à autossuficiência que se justifica em leis humanas disfarçadas de divindade.

Os cristãos gálatas tinham chegado ao cristianismo graças à pregação de Paulo, mas neste momento estavam a ponto de aceitar o engano judaico-cristão. Muitos deles disponham-se a ser circuncidados e outros já o tinham feito. Tinham aceitado que a cruz de Cristo não era suficiente, que deviam acrescentar algo mais à sua fé. Tinham começado a tentar agradar a Deus, mas agora disponham-se a seguir as condições que lhes impunha uma falsa religiosidade. De serem pessoas libertadas pela mensagem de Jesus, tinham passado a ser verdadeiros escravos da Lei. Melhor teria sido não conhecer Cristo, pensa Paulo. Melhor teria sido, a mais do que um de nós, não conhecer a mensagem de Cristo que se prega em algumas comunidades, assim poderíamos ter sido um pouco mais livres. Ainda que o ideal, seja que cada um tenha a convicção que Paulo tenta transmitir aos gálatas e que muitas comunidades atuais pregam: “E porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: «Abba, Pai!». Deste modo, já não és escravo, mas filho; e se és filho, és também herdeiro por graça de Deus (3)”.

Não é preciso nada mais, reconhecerem-se filhos, deixarem de se sentirem escravos de ideias absurdas que não têm nada que ver com cada um. Deixar de querer ser o que não se é e estar agradecidos perante a herança recebida graças a Cristo. Ele dá-nos tudo, nós só somos salvos pelo seu sacrifício, não pelos nossos. A Lei é a maldição de que Cristo nos redimiu (4). O Espírito de Cristo nosso guia para uma liberdade que produz frutos como “amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fé,  mansidão, autodomínio (5)”. Os que decidiram viver “sob a carne”, isto é, os que crêem que é necessário completar o sacrifício de Cristo com os seus próprios, exigem, aos demais, o cumprimento da Lei. Mas a única lei que devemos cumprir é a que Cristo nos ensinou e que Paulo nos recorda: “Amarás o próximo como a ti mesmo (6)”.

O apóstolo rejeita a circuncisão como prova de estar no caminho correto: “De nada vale estar ou não circuncidados; o que sim vale é o ter sido criados de novo”.  É isto o que vale a pena refletir, se realmente somos parte ou tornamos presente a nova criação que Deus quer para o nosso mundo. Alguns gabam-se das suas perfeições porque cumprem as normas e condições que querem impor aos outros, mas Paulo termina a sua carta explicando como se manifesta nele a nova criação: “eu levo no meu corpo as marcas de Jesus (7)”.



Carlos Osma

Tradução de Aníbal Liberal Neves




Artigo original: "Como un cristiano insensato".


 NOTAS:

(2) Gal 3,28
(3) 4,6-7.
(4) 3,13.
(5) 5,22
(6) 5,13.
(7) 6,17


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