DOR, DESEJO E LIBERTAÇÃO, NOS BRAÇOS DO ANJO


No final fez-se noite, e preferiu ficar só. Já não necessitava da família nem dos amigos, tinha-se afastado deles pouco a pouco, quase sem se dar conta. A contínua tensão em que vivia começava a fazer efeito nele, por isso procurou um lugar na noite onde passar desapercebido. Ali estava, no meio do nada, agudizando todos os seus sentidos para não ser descoberto, e com a esperança de encontrar alguma tranquilidade.

Preferiu ficar só, esperando, enquanto recordava as mentiras, enganos, e astúcias que o tinham ajudado a construir a sua vida. Sempre tinha fugido de tudo, invadido por profundos medos e desestabilizadores desejos; mas agora pressentia que não podia escapar mais, e que rapidamente acabaria por enfrentar os seus piores pesadelos. O seu corpo comprimia-se com essa mescla de sentimentos, e talvez por isso subiu até àquele lugar inóspito, onde a escuridão da noite impedia distinguir outros rostos.

O terror atravessou-lhe a alma quando sentiu ao seu lado a presença de outro homem. Voltou-se com rapidez para ver aquele demónio que a ele se encostava. Tentou olhá-lo na cara, mas já era tarde, tinha-o em cima. Foi uma luta atroz, onde o desejo insaciável pela vida, o ajudou a não se dar por vencido. Tentou escapar dos braços de seu inimigo com todas as suas forças: empurrando, golpeando, mesmo mordendo, mas foi-lhe impossível. Uma força sobre-humana que desconhecia empurrava-o uma e outra vez para ele. Nunca tinha resistido tanto, mas jamais tinha sentido uma atração tão sobre-humana como aquela.

Durante toda a noite não pode escapar àquele corpo, sentiu a sua força, a sua pele e o calor que desprendia. Aquilo produziu-lhe uma profunda dor que não podia entender nem partilhar com ninguém, estava só. Em cada um dos golpes que infringia àquele ser demoníaco concentravam-se todas as experiências de rejeição, falsidade e dor que o acompanhavam desde criança. Toda a energia desperdiçada na sua fuga, para lugar nenhum, explodia de modo virulento para repelir aquele corpo cobiçável. Uma longa e obscura noite, com ânsias de amor fogoso, que não teve outra luz nem guia, mas um coração ardente[1].

Mas chegou a manhã e aqueles primeiros raios de luz permitiram-lhe adivinhar o rosto de com quem lutava. Não era um demónio, o formoso corpo daquele homem pertencia a um ser celestial. Contam os antigos que foi nesse momento, enquanto observava maravilhado, que golpeou aquele ser divino deixando-o ferido para sempre[2]. Então, como se de um milagre se tratasse, os seus olhos viram claramente o homem que jazia no solo ferido pelas suas rebeliões, moído pelos seus pecados, e com uma chaga lateral[3]. Aquele ser que tinha vindo, não para lutar, mas para o acompanhar na sua libertação, sussurrava-lhe: “vai-te, deixa-me já, que nasce um novo dia. Vai-te, eu não te condeno”.

Podia tê-lo deixado sair naquele momento, mas não o pode fazer. A experiência tinha-o transformado para sempre, isso sabia-o, mas precisava muito mais. Por isso, com o seu desejo liberto, aproximou-se ainda mais dele, e abraçou-o com todas as forças que ainda tinha. “Não, não te deixarei”, dizia-lhe uma ou outra vez, “agora não; não te deixarei se não me abençoas”. Muito lhe tinha costado chegar até ali como para perder a oportunidade de levar sempre consigo algo da essência divina. Preferia morrer nos braços daquele anjo, a voltar sozinho à vida que tinha levado até então.

E milagrosamente recebeu o que pedia, foi transformado, saiu da escuridão da sua vida anterior para entrar numa nova. Já não tinha que fugir de ninguém, o próprio Deus estaria com ele em cada momento da sua vida para enfrentar os seus temores. O seu nome, a sua falsa identidade, aquele que toda a gente pensava que era, desapareceu para sempre. Agora era alguém novo, porque se atrevia a ser ele próprio em todas as facetas da sua vida. Não precisava de mentir, nem de enganar, nem de se esconder. A experiência com aquele ser divino mudou-o para sempre, e entrou a fazer parte de um povo. Um povo à procura da vida, a que o próprio Deus lhe tinha dado.

Que alegria recordar aquela noite escura e dolorosa, que se converteu numa noite mais amável que a alvorada, onde fomos guiados, e transformados pelo amado[4]. Uma noite onde caíram os disfarces que tão dolorosamente levávamos e na qual fomos conduzidos perante a verdade nua de quem éramos. Ali vimos perfeitamente as feridas que produzia a negação da nossa identidade naquele que nos deu a vida. E ali, abraçando o ferido pelas nossas rebeliões, chorámos pela nossa incredulidade, pela nossa ignorância, e por todas aquelas vezes que o tínhamos golpeado pensando que era nosso inimigo.


                              
Carlos Osma

Tradução de Aníbal Liberal Neves





[1] Referência a “Noche oscura del Alma” de San Juan de la Cruz.
[2] Gerard von Rad sustem que provavelmente, numa forma muito mais antiga de esta saga, e antes de que o texto bíblico fosse fixado como hoje o conhecemos, foi Jacob quem feriu o anjo. “O livro dos Génesis”. (Ediciones Sígueme. Salamanca, 1988), p.395.
[3] Referência a Is 53,5.
      [4] Referência a “Noche oscura del Alma” de San Juan de la Cruz.




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